11.02.2010

Jair Naves – Araguari (2010)

Depois do anúncio do fim, em janeiro de 2009, de uma das melhores bandas surgidas no Brasil nesta última década, o Ludovic, Jair Naves (vocalista e letrista do grupo), passou aquele ano trabalhando em uma carreira solo que começou a ser divulgada no início de 2010, com o lançamento do EP Araguari (Travolta Discos), que também é uma cidade do interior de Minas Gerais, onde o músico nasceu e passou boa parte da infância. O grupo que acompanha Jair Naves (voz, violão, guitarra, baixo e sintetizadores) neste EP é formado por Alexandre Xavier (piano), Júlia Frate (Voz) e Mark Paschoal (bateria e voz).
O disco traz quatro excelentes músicas, com melodias mais suaves, tranqüilas e limpas, diferente do Ludovic, que tinha uma sonoridade mais pesada e distorcida. As letras são autorais e confessionais, abordando temas como desilusão amorosa, paixão doentia, arrependimentos, inocência perdida, saudades de situações vividas (Mas eu sinto saudade da nossa banda / de cada palco em que eu pisei, de cada nota que eu cantei), saudades da infância (as crianças da nossa rua já não somos nós) e, principalmente, recordações da cidade natal do músico.
A primeira música do EP é “Araguari I (Meus Amores Inconfessos)”, que começa com uma bela introdução de piano e ao fundo pode se ouvir um diálogo e gritos retirados do filme O Caso dos Irmãos Naves, sobre o caso de dois irmãos, Sebastião e Joaquim, que confessaram um crime que jamais cometeram, foram presos, torturados e mortos, durante a ditadura militar.
Quando se encerra o diálogo, começa uma batida densa e forte da bateria que acompanha o piano, até a entrada do violão acústico, que dá início a melodia base da música, que logo na sequência é acompanhada pela voz grave e sofrida de Jair Naves. Não há variações na melodia, a base segue a mesma até o final. Uma bela canção, que fala da saída do cantor de Araguari, ainda novo e com vontade de enfrentar o mundo; o retorno e a saudade da cidade natal; reflexão sobre as situações que viveu; saudades da infância, dos sonhos, amores inconfessos e bandas com a qual tocou.
Na sequência, tem-se a música mais bela e triste feita neste ano de 2010, “Silenciosa”. Ela é sobre o fim de um amor, de um relacionamento. Um fim consensual, civilizado, sem discussões e com um sentimento de culpa. Um lamento pela perda das forças em continuar lutando por esse amor, uma lamentação por acreditar que “Se não deu certo com a gente / acho que nunca vai dar”. Aqui, Jair Naves expõe o sofrimento que sente pela solidão vivida por não compartilhar mais as situações que vivia e compartilhava com a pessoa amada: “A cama ficou espaçosa / nosso quarto ficou mais frio / a casa, silenciosa, / não me serve como abrigo”.
“Silenciosa” tem um arranjo simples e bonito, com apenas violão, piano e voz. Aqui o principal destaque é o dueto vocal de Jair Naves com Júlia Frate (que também aparece fazendo belos backing vocals nas outras três faixas do disco).
A terceira faixa é “De branquidão hospitalar, queimando em febre, eu me apaixonei”, que se diferencia das outras faixas, por ser a mais pesada do disco, começando com uma batidas seca de bateria e uma linha de baixo forte, com a entrada do teclado na sequência, que dão um clima pós-punk fortemente influenciado pelas bandas da década 80. Aqui sai o clima de desilusão com o amor e o relacionamento, registrado na faixa anterior, para a entrada de uma paixão doentia por outra pessoa.
A última música do EP, “Araguari II (Meus dias de Vândalo), talvez seja a mais ambiciosa do grupo, possuindo mudanças de andamento, alternando momentos mais calmos, porém densos, com o vocal grave e forte de Jair Naves contrastando com a voz bela e suave de Júlia Frate; com outros mais pesados e vocais um pouco mais agressivos; terminando com apenas voz, guitarra e piano, com Jair Naves cantando de forma sombria o seguinte lamento: “Talvez fosse preferível / que eu nunca tivesse saído / de onde eu nasci, / de Araguari”.
Com apenas quatro músicas, todas muito boas, sendo difícil apontar qual é a melhor, o EP Araguari, deixa o ouvinte com aquela vontade de ouvir mais músicas desta nova fase da carreira de Jair Naves. A espera não deve ser muito longa, já que, em recente entrevista ao site da Ideal Shop, o músico afirmou que tem planos de lançar um disco com 11 ou 12 músicas em 2011. Vale a pena esperar para conferir o próximo trabalho deste que é um dos melhores compositores de sua geração.

Faça o download do EP Araguari no site de Jair Naves no Trama Virtual:
http://tramavirtual.uol.com.br/artistas/jair_naves
Ou ouça as músicas no Myspace do artista:
http://www.myspace.com/jairnaves

Track list:
1 - Araguari I (Meus Amores Inconfessos) - 4:48
2 - Silenciosa - 5:18
3 - De branquidão hospitalar, queimando em febre, eu me apaixonei - 3:44
4 - Araguari II (Meus dias de Vândalo) - 6:12

 

Letras das Músicas:

Araguari I (Meus Amores Inconfessos)
As lembranças que eu guardo de Araguari
resumem-se ao dia em que eu fugi
caçado de perto por uma multidão
decidida a fazer justiça com as próprias mãos

Ecoavam sermões pelas ruas dormentes
ninguém larga tudo impunemente
o abandono é a pior traição
no fim das contas, hoje eu te dou razão

Em minha defesa, eu apelo ao óbvio:
eu era novo e sem temor,
eu tinha o mundo ao meu dispor
Só que a vida passou e eu caí em nostalgia
mesmo de coisas que eu mal vivi,
o que dizer da inocência que eu deixei em Araguari?

Araguari, o que foi que aconteceu?
Fui eu que te perdi ou você que me perdeu?
Foge à minha compreensão,
mas eu te dou razão

Fato é que eu não sou mais quem eu era antes
eu voltei envelhecido e hesitante
Hoje eu que cuido dos meus pais
e as crianças da nossa rua já não somos nós

Mas eu sinto saudade da nossa banda
de cada palco em que eu pisei, de cada nota que eu cantei
E ainda me dá um nó na garganta
pensar nos sonhos que eu sonhei,
na leveza dos amores que eu desperdicei

As brigas que eu comprei,
Meus amores inconfessos,
Os sonhos que eu sonhei...

Silenciosa
Passou, passou
Um dia eu me conformo
e paro de me culpar
Passou, acabou
Sabe quando você sente que não vale mais a pena lutar?
Se não deu certo com a gente, acho que nunca vai dar

Passou, passou
Um dia eu me acostumo
e paro de te importunar
Passou, acabou
Sabe quando você sente que não vale mais a pena lutar?
Se não deu certo com a gente, acho que nunca vai dar

Prometo que eu não demoro
quando eu estiver pronto, eu te aviso
Se bem que eu não me incomodo
pode ir agora que eu já não ligo
Só vê se não esqueceu nada
e vê se não volta mais
Enquanto eu não me recobro,
enquanto eu não estiver bem, em paz

A cama ficou espaçosa
nosso quarto ficou mais frio
A casa, silenciosa,
não me serve mais como abrigo
E foi consensual
nós nem sequer discutimos
Tudo tão civilizado
nem parecia comigo

Nossos amigos ainda questionam o que foi dessa vez
qual a gota d’água, como eu consegui
afastar você de mim

Deve haver em tudo isso alguma lição
algo a ser aprendido, uma compensação
para o quanto nós nos ferimos

Passou, passou
Um dia eu me conformo
e paro de te culpar
Passou, acabou
Sabe quando você sente que não vale mais a pena lutar?
Se não deu certo com a gente, acho que nunca vai dar

De branquidão hospitalar, queimando em febre, eu me apaixonei
No cômodo abafado, de branquidão hospitalar
via-se um mar de rostos borrados tentando te acordar
Você zombava desse empenho, da proteção que eu ofereci
um demônio enfermo de quem eu não consigo me despedir

Delirante, queimando em febre, você buscou a minha mão
A esse poder que você exerce eu nunca soube dizer não

Ela reagiu como se possuída
por um espírito ruim
Dizendo “prepare-se pra uma guerra, eu não respondo mais por mim”
E eu, tão impressionável,
me apaixonei
Eu me apaixonei,
eu me apaixonei

O que eu mim você reconhece, eu reconheço em você (não estou só)
O gosto da sua pele, as fraquezas que eu tento esconder (não estou só)

Quando eu menos esperava, a vida não falhou em me surpreender (não estou só)
Nada mais me entristece agora que eu encontrei você (não estou só)
Quando eu menos esperava, a vida não falhou em me surpreender (não estou só)
Nada mais me entristece agora que eu encontrei você (não estou só)

Araguari II (Meus Dias de Vândalo)
Como eu me defendo desse sentimento de inadequação
Que me destrói por dentro, pro qual eu não vejo explicação?
Bandeira a meio mastro, um afago áspero, a voz do cantor
Eu criei um certo faro para esse tipo de enganador

(Graças a você)

Ladeira abaixo, assim foi dito
uma obra-prima de eufemismo
para as dores da inaptidão,
para o sufocante calor da afobação
Ninguém imagina o que eu enfrentei
o quanto doeu, o quanto eu rezei
minha reza de ateu
num desespero que eu nunca me atrevo a demonstrar

Bêbada e vingativa,
o amor como eu o conhecia
de peito estufado, cheia de si
cantando em copos por aí
na madrugada eterna e ardente
que te deixou toda em carne-viva

Uma adoração inconcebível (em mim você devia confiar)
todo o amor que me é possível (eu vejo tanto de mim mesma em você)
recolhido, quieto, ensimesmado
meu refém conformado e imperturbável
na madrugada eterna e ardente
que me deixou todo em carne-viva

Agora, convenhamos: eu nunca me expus tanto, você nem pra impedir
Com todo esse alvoroço, eu só engoli meu almoço, não senti gosto algum
A torneira que eu esqueci aberta não tardou a inundar todo o prédio
mas eu sobrevivi, eu sobrevivi

O tempo que a gente passou aqui morando de favor
nos tornou parte da mobília sem valor
na percepção pobre e turva daquele que nos abrigou

E foi nesse corredor que eu vi o fantasma de um senhor
e de um labrador
magro, manco e ameaçador
Eu é que não vou me meter com esses dois

Nem queira saber o que eu ambiciono,
o que me mantém vivo, porque eu não cedo ao sono
Eu te aconselho: nem queira saber

Assim que os meus dias de vândalo terminarem,
eu sei que me levarão pro céu
E farão com que eu narre os meus escândalos
sem que eu me gabe,
com o constrangimento abatido de um réu
Talvez fosse preferível
que eu nunca tivesse saído
de onde eu nasci,
de Araguari

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